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O que o Tribunal de Justiça tem a ver com os agrotóxicos no Estado - Por Carlos Roberto Lima Paganella

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No último dia 1º, a Assembleia Legislativa realizou audiência pública para debater com a sociedade o uso indiscriminado de agrotóxicos, o controle da crescente contaminação dos alimentos por pesticidas e os fundamentos das decisões das 21ª e 22ª Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça, que liberaram a distribuição e comercialização do agrotóxico Paraquate e outros venenos no território do Estado.

No foco da questão, as decisões negaram validade ao art. 1º, § 2º, da Lei Gaúcha de Agrotóxicos (Lei 7747/82), que exige prévio cadastramento dos agrotóxicos e biocidas na FEPAM e, se forem importados, devem comprovar o uso autorizado no país de origem. O ingrediente ativo Paraquate foi desenvolvido na década de 60 e seu uso está proibido no Reino Unido e na China, países exportadores dessa substância química. Nos seres humanos, a absorção do Paraquate pela pele ou por inalação, causa falência aguda de órgãos, fibrose pulmonar progressiva e irreversível (asfixia progressiva do intoxicado – síndrome da angústia respiratória aguda) resultando em morte na maioria dos casos já comprovados. Estudos indicam suspeita de carcinogenicidade (levam ao câncer) para seres humanos, toxicidade reprodutiva e neurotoxicidade, desregulação endócrina, insuficiência renal e hepática, distúrbios hormonais, etc. Causam danos ambientais em mamíferos, leporídeos (coelhos) e ovos de aves. Se nenhuma boa razão jurídica a mais houvesse para rejeição da hermenêutica praticada nas duas Câmaras Cíveis, o princípio da precaução ambiental recomendaria a suspensão cautelar da venda, priorizando a Lei gaúcha e o mínimo existencial ecológico, garantido pelo direito fundamental e humano, que não está sendo maximizado.

Por trás do debate ético-jurídico de interesses supraindividuais da ecologia e saúde pública, está o interesse comercial individual e privado judicializado por três poderosas multinacionais do agronegócio: Syngenta Proteção de Cultivos Ltda., Helm do Brasil Mercantil Ltda. e Sinon do Brasil Ltda. A indústria dos agrotóxicos aumentou seu faturamento em 215% entre 2001 e 2010 e o Brasil elevou a taxa de importação dos venenos em 650% nos últimos 10 anos, porém a área cultivada cresceu apenas 30%, o que significa que aumentou o número de aplicações, potencializando a contaminação do solo na mesma área de plantio. Em 2008, o Brasil ultrapassou os EUA e assumiu o posto de maior consumidor de agrotóxicos do mundo, com mais de 85 milhões de litros, numa média de 8,3 litros de veneno por gaúcho (a média nacional é de 4,5 litros por habitante). O Estado ocupa o triste posto de ser o 3º maior consumidor de agrotóxicos, utilizando 12% do total de veneno utilizado no Brasil.

Existem outras vertentes interpretativas para a “única solução jurisdicional correta”, inclusive o benefício da dúvida (in dubio pro natura). O STF já exerceu seu poder decisório compatibilizando, constitucionalmente, a proteção e defesa dos bens jurídicos difusos como saúde, meio ambiente e consumidor, priorizando a validade de norma estadual, quando a norma geral federal trai sua destinação constitucional ou mostra nítida insuficiência protetiva e de defesa (ADI 3357). Entretanto, os órgãos fracionários mencionados preferiram o dogma de que somente a União detém competência para estabelecer proibições à produção, comércio e consumo de mercadorias que contenham substâncias nocivas, abstraindo o enfrentamento do risco que a substância causa à sadia qualidade de vida. Segundo os desembargadore(a)s, é possível o Estado regulamentar o uso nos vazios da norma geral federal (Lei Federal 7.802/89), contanto que essa normatização não impeça a distribuição e comercialização de produtos técnicos cadastrados e registrados pela União (ANVISA/MAPA/IBAMA).

Olvidou-se que a própria ANVISA, baseada em estudos, editou a Resolução RDC nº 10/2008 (DOU de 25.02.2008), que obriga a reavaliação toxicológica desse produto formulado, comprovando alta toxicidade aguda e toxicidade crônica, sendo que a contaminação se dá por circunstância ocupacional. Consabida a resiliência desse agrotóxico e os resíduos acumulados no solo e águas superficiais e subterrâneas. A agricultura industrial e química, com incremento de aplicação de fertilizantes e agroquímicos, expande no Rio Grande do Sul a monocultura exportadora de soja (agrobusines) e agora deita seus tentáculos sobre as últimas reservas do Bioma Pampa (zona sul), na ausência de zoneamento ecológico-econômico definido em nossa política de proteção ambiental.

As decisões das Câmaras Cíveis, em última análise, retrocederam nos níveis de proteção e defesa de direitos fundamentais e humanos à sadia qualidade de vida e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, V, CF) que já se haviam incorporado como direitos subjetivos organizacionais e procedimentais da coletividade gaúcha. Ao retirar validade e eficácia da Lei gaúcha, o Tribunal deixou de atender ao direito internacional ambiental, infringindo a cláusula de progressividade prevista no Pacto sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Protocolo San Salvador – adicional à Convenção Americana sobre DH (1969/1988) – Tratado Internacional Multilateral (art. 11 - Os Estados-partes promoverão a proteção, preservação e o melhoramento do Meio Ambiente). Pelo contrário, esvaziaram a promessa constitucional de elevação dos níveis de proteção e defesa do bem ambiental, eliminaram posições jurídicas já consolidadas de garantia da sadia qualidade de vida incorporada aos direitos subjetivos de cidadania da sociedade gaúcha. Os julgados fizeram o menos, quando poderiam ter feito o mais, porque o poder julgador também está vinculado, tanto quanto o legislador positivo e o administrador, à missão de cumprir a Lei Fundamental e proteger o bem de uso comum do povo, questão de fundo das causas coletivas postas nesse debate ético-jurídico (rende-se justiça ao único voto – vencido - pela validade da Lei gaúcha, do Des. Marco Aurélio Heinz, revisor, 21ª CC, AC 70058679861, MS de Syngenta).

O dia 3 de dezembro de 1984 é mundialmente lembrado pela tragédia de Bhopal, quando 40 toneladas de gases tóxicos vazaram de uma fábrica de pesticidas na Índia, expondo à contaminação direta e indireta cerca de 500 mil pessoas, com cerca de 10 mil mortes em números até hoje controvertidos, mas com efeitos colaterais à saúde de trabalhadores e da população até hoje sentidos, sendo consenso entre os cientistas que a tragédia poderia ter sido evitada caso existissem medidas precaucionais.
Talvez esses fatos nos sirvam de alerta para entendermos como lidar com as exposições a riscos ambientais que possam afetar a coletividade indefesa. A atenção a valores mais sensíveis pode nos apontar o correto e inarredável uso da cautela nas soluções jurisdicionais que tratem de interesses públicos com reflexos marcadamente metaindividuais.


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